O discurso de JK Rowling
aos estudantes recém-licenciados de uma das principais universidades
norte-americanas foi a minha leitura de dia de Natal. É um texto pequeno, mas
com duas ideias fundamentais, sobretudo para quem vai abandonar os bancos da
escola para ingressar no chamado “mundo real”. A primeira é a ideia de
fracasso. Pergunta essencial é a de perceber o que é o fracasso. Há respostas imediatas, mas a verdade é que todos conhecemos pessoas com uma imagem de sucesso e que, no fundo, escondem fracassos existenciais. Por não trabalharem no que sonhavam, por não realizarem sonhos de juventude ou por não terem laços afectivos consistentes, por exemplo. Sem que com isto esteja a dizer que o fracasso é sempre da responsabilidade de quem o sente, pois por vezes há condições exteriores muito adversas. Mas, ainda que assim não seja, por mais bem-sucedidos
que nos sintamos há sempre um momento na vida em que o experimentamos. A outra ideia-chave que perpassa o texto é
a do poder da imaginação, para a construção de uma vida melhor, para nós e para
os outros. Este é um texto inspirador e que pode bem ser uma leitura não apenas
para crianças e jovens, mas para pessoas já mais entradas nos anos. Afinal,
como disse o nosso José Ferreira Gomes, viver
sempre também cansa. Este livro dá um bocadinho de ânimo para enfrentar os
dias invernais da nossa alma.
terça-feira, 26 de dezembro de 2017
sábado, 23 de dezembro de 2017
Feliz Natal!
Feliz Natal a todos e
todas os que passam por este blogue. Obrigada pela presença, pelas partilhas e
pelos comentários! Nestes tempos tão difíceis, com a multiplicação
de injustiças e perpetuação de sofrimentos, escolhi esta frase de Dickens para assinalar a quadra. Todos os
dias devem ser, ao menos um bocadinho, dia de Natal. Pela alegria de estar
vivo, pelas possibilidades que a vida nos traz e pela capacidade que todos
temos de fazer do mundo um lugar um bocadinho melhor.
sexta-feira, 22 de dezembro de 2017
Eu matei Xerazade, Confissões de uma mulher árabe em fúria, Joumana Haddad
Joumana
Haddad nasceu e cresceu no Líbano, onde ainda hoje vive. Intelectual, escritora
e poetisa, é também editora da revista Jasad, publicação cultural dedicada ao
corpo e ao erotismo. Este livro, que inaugura o lançamento de uma nova editora
em Portugal (Sibilia Publicações) é um misto de autobiografia e manifesto. Na
sua formulação original serviu de base a uma peça de teatro levada à cena nos
Estados Unidos. A autora questiona o que significa ser árabe e em particular
ser uma mulher árabe. Recordou a sua infância, o acesso aos livros como
passaporte para uma liberdade sonhada e o modo como constrói esse mesmo sonho
de criança: “Adorava ler por muitas
razões: lia para respirar; lia para viver (tanto a minha vida como a dos
outros); lia para viajar; lia para escapar a uma realidade brutal; lia pata
abafar as explosões da guerra do Líbano; lia para ignorar os gritos dos meus
pais, o seu dia-a-dia de discussões e sofrimentos; lia para alimentar a minha ambição;
lia para ganhar forças; lia para afagar a minha alma; lia para esbofetear a
minha alma; lia para aprender; lia para esquecer; lia para recordar; lia para
compreender; lia para ter esperança; lia para planear; lia para acreditar; lia
para amar; lia para desejar e pata me excitar …
E lia, especialmente, para
ser capaz de honrar a promessa que tinha feito a mim mesmo de que, um dia, a
minha vida seria diferente (…)”
Em
alguns momentos do livro recordou-me As
identidades assassinas de Amin Malouf, pela capacidade de questionar o que
normalmente identificamos como as coordenadas existenciais dos outros e de nós
próprios. O livro é provocador, convocando o olhar ocidental, mas também as
mulheres árabes que devem reivindicar a sua liberdade. Claro que Haddad sabe
distinguir as realidades. Há espaço em que tal reivindicação não é possível
(como sucede com as meninas forçadas a casamentos precoces), mas há muitos
outros que identifica como sendo responsabilidade de cada mulher não abdicar da
liberdade que é naturalmente sua. É neste ponto que nos explica o porquê de
matar Xerazade, modelo antiquado que continua a ser a mulher árabe de
referência.
O
livro está escrito de forma enérgica, com uma excelente edição em português,
tornando a sua leitura um verdadeiro prazer. É inteligente e provocador, criando-nos
a vontade de ler mais obra desta autora (creio que nada mais está, por ora,
editado entre nós).
domingo, 17 de dezembro de 2017
As lições de Miss Austen
![]() |
Orgulho e Preconceito (1940) |
Numa
cena célebre de Orgulho e Preconceito
Mr. Darcy declara-se a Elisabeth Bennet. Diz-lhe que a paixão tomou a melhor
sobre todos os argumentos razoáveis que ele mesmo elencou contra ela e que não
tem outra opção senão pedi-la em casamento, mesmo reconhecendo que essa união
lhe é desfavorável em todos os sentidos. É recusado, mas o mais interessante
são as razões invocadas para tanto. Diz-lhe Elisabeth “Por mim, poderia
perguntar por que, com o intuito tão evidente de me ofender e insultar, o senhor
resolveu dizer que gosta de mim, contra a sua vontade, contra a sua razão e
mesmo contra o seu carácter?”
O
sucesso de Jane Austen não foi fruto do acaso ou de uma feliz coincidência.
Nasceu numa família com hábitos culturais e sempre foi encorajada a ler e
escrever. Começou por criar e encenar peças com os irmãos e, mais tarde, escreveu
romances lidos em voz alta para a família. Foi o pai quem a encorajou a publicar,
o que sucedeu pela primeira vez em 1811, com Sensibilidade e Bom Senso, trazido à estampa anonimamente (By a
Lady, como se lia na capa). O livro teve um enorme êxito, de tal forma que
houve quem defendesse que o autor só podia ser um homem fazendo-se passar por
mulher. Mas o êxito experimentado em vida não impediu que com a morte Austen acabasse
por cair num esquecimento que, embora nunca tenha sido total, não faria
adivinhar o sucesso universal de que hoje goza. São milhões os que lêem os seus
livros ou os reconhecem em filmes, séries de televisão e sequelas e prequelas
de maior ou menor qualidade.
Não
me tornei uma admiradora imediata de Jane Austen mal li os seus livros. Mas, à
medida que os anos passam, vou-me apercebendo da absoluta genialidade da sua
escrita, não só na forma, mas também na substância dos seus romances. Os seus
livros causaram e causam incómodos a muitos, creio que por romper estereótipos
e tabus. Num primeiro momento, podemos querer reduzir Austen a uma escritora do
chá das cinco. Mas uma leitura mais atenta da sua obra afasta essa ilusão.
O
século XIX trouxe consigo o romantismo, com as suas heroínas lânguidas,
dominadas pelas emoções e incapazes de se guiarem pela razão, bússola essencial
da vida aparentemente de acesso reservado aos homens e às mulheres cerebrais. O
mito da paixão distingue de modo absoluto as emoções da razão. Hoje, esta
dicotomia está afastada pela ciência. As emoções não são forças perante as
quais nada podemos fazer senão claudicar e deixarmo-nos arrastar. Ao invés,
ganha campo a tese de que elas próprias são maturadas e têm um lugar no
processo decisório consciente. Distinguem-se, pois, as emoções da patologia
delas, esta sim, capaz de nos arrastar para más escolhas ou situações de que
não conseguimos libertar-nos.
Jane
Austen viu tudo isto com clareza. Nos seus livros não há personagens toldadas pelas
emoções ou descontroladas ao ponto de perderem a capacidade de escolher o seu
caminho. Há Marianne de Sensibilidade e
Bom Senso, uma adolescente impetuosa e imaginativa. Mas o livro é um
romance de formação das duas protagonistas (aquela e a irmã Eleonor). Através
da dicotomia entre ambas (sendo Eleonor, por contraponto à irmã mais nova,
racional ao ponto de parecer destituída de qualquer fogo interior) Austen
pretende mostrar que todo o ser humano (máxime as mulheres sobre quem escreve),
tem de saber encontrar o ponto de equilíbrio entre as duas forças vitais. De
todas as personagens saídas da pena de Austen, creio que Elisabeth Bennet é a
que melhor procede àquela síntese, sendo o diálogo com que iniciei este texto o
momento máximo dessa filosofia de vida. O que Austen conseguiu, nesse e em
outros livros, foi mostrar a capacidade de raciocínio e de decisão das
mulheres, apesar dos constrangimentos da época. É certo que ao tempo, para
muitas delas e seguramente para as heroínas daquela escritora, a grande decisão
é a escolha de marido. Alguém de quem gostem, mas que lhes seja conveniente,
desde logo pelo carácter demonstrado (lembre-se que não é a fortuna que permite
a nenhum dos pretendentes obter a ansiado sim, mas antes o reconhecimento das
suas qualidades morais). Esta capacidade afasta diametralmente as heroínas
austenianas de outras construções do século XIX, sobretudo as saídas da
imaginação masculina. Por exemplo, Ema Bovary (Flaubert, 1856) com a sua
incapacidade de encontrar um caminho de vida, perdida entre luxos e devaneios.
Ou Anna Karenina (Tólstoi, 1877) que perde a sua posição social, filho e vida
devido ao encanto mais que passageiro de uma bela figura vestida de farda de
gala, o conde Vrónski. Ou a heroína do romance de Balzac, A mulher de trinta anos (1842), desfeita por um casamento infeliz
para cuja saída apenas encontra a morte. Se olharmos à nossa volta e para nós
mesmos (e a literatura é o nosso espelho), quem é que se deixou toldar pela
fantasia e não viu o mundo e os seres humanos como eles são? Seguramente não as
construções de Jane Austen que não se sacrificam, nem esperam sacrifícios
desmesurados de ninguém em seu benefício, n’est
pas?
Austen
era mais velha do que qualquer daqueles escritores, tendo além disso morrido
prematuramente (aos trinta e seis anos). O que é uma pena a todos os títulos.
Tenho pensado muitas vezes em como seriam os livros que poderia ter escrito se
tivesse vivido mais anos. E tenho a certeza que teria tido uma palavra a dizer
sobre as figuras femininas saídas da imaginação (ou será da patologia
imaginativa?) dos escritores que referi acima! E
o que interessa isso para os nossos dias? Interessa muito mesmo. O que Jane
Austen nos ensina é que quem nos ama nos valoriza e isso é algo que na escolha
de um parceiro deve ser valorizado. O amor, tal como Austen no-lo mostra,
não é feito de lágrimas, suspiros, repetições de agravos e perdições. O que num
país como nosso, com números assustadores no quadro da violência doméstica, é
uma lição que é cada vez mais urgente recolher.
terça-feira, 12 de dezembro de 2017
Silêncio na Era do Ruido, Erling Kagge
Erling
Kagge é uma espécie de homem do renascimento contemporâneo. Explorador,
escritor, editor, advogado, viajante e filósofo é claramente um bom exemplo da
dificuldade sentida pelo ser humano de ficar sossegado no seu quarto, tão bem
identificada por Blaise Pascal.
O
movimento, como o silêncio, não são em si mesmos bons ou maus, dependendo do
uso que lhes damos. É sobretudo sobre o último que Kagge se debruça neste
pequeno ensaio filosófico agora editado entre nós. O silêncio não tem de ser
estático, pois um dos momentos em que o podemos encontrar é quando caminhamos,
não só nos grandes espaços da natureza mas também nos territórios urbanos por
onde circulamos habitualmente. Este livro recorda-nos desde logo como o
silêncio é raro, não só porque por iniciativa própria preenchemos todos os
espaços com ruído (incluindo a “música de fundo”), mas porque mesmo quando o
procuramos, o espaço exterior dificulta o encontro. Isso mesmo verifiquei
quando depois de ter lido este livro fui no seu encalço. Os ruídos da rua, de
dia e de noite, dificultam muito essa tarefa. Depois de encontrarmos o silêncio
vem outra tarefa: convivermos com ele, descobri-lo, percorrer-lhe as
possibilidades. É aqui que este ensaio nos dá uma ajuda preciosa. Escrito com
simplicidade, mas sem abdicar de profundidade, convoca exemplos das artes (como
o quadro de Munch com o seu poderoso grito silencioso, encerrando afinal um
paradoxo) e da experiência pessoal do autor para nos alertar da raridade e
riqueza que podemos encontrar quando conseguimos ouvir o silêncio dentro de nós
e para lá das nossas fronteiras. Um livro que vale a pena ler e reler. Uma
excelente prenda de Natal ou mesmo auto-prenda de Natal…
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